sexta-feira, 4 de maio de 2012

Nas Sombras II


Por volta da meia-noite, os olhos dela tomaram finalmente forma. A expressão era felina, meio decidida e meio hesitante, problemática. Sim, estavam mesmo bem aqueles olhos. Erguendo-se para as sobrancelhas finas e elegantes, a poucos centímetros da cascata escura do cabelo.

Esticou o papel a todo o comprimento do braço para avaliar o progresso do esboço. Era complicado trabalhar sem a ter à sua frente, mas, por outro lado, nunca conseguiria desenhar na sua presença. Desde que chegara de Londres, não, desde que a vira pela primeira vez, tivera de ter cuidado para a manter sempre à distância.

Aproximava-se agora dele todos os dias e cada dia era mais difícil do que o anterior. Era por isso que se ia embora na manhã seguinte, para a Índia, para as Américas, não sabia para onde nem se importava. Qualquer sítio seria mais fácil do que estar aqui.

Inclinou-se de novo sobre o desenho, suspirou e usou o polegar para aperfeiçoar o beicinho traçado a carvão do seu lábio inferior polpudo. Este papel inanimado, cruel impostor, era a única forma de a levar com ele.

Então, endireitando-se na cadeira de couro da biblioteca, sentiu-a. Aquela pincelada de ardor na parte de trás do pescoço.

Ela.

A sua mera proximidade provocou-lhe uma sensação muito peculiar, como o tipo de calor que é emitido quando um pedaço de lenha se desfaz em cinza numa lareira. Soube, sem se virar: ela estava ali. Cobriu o retrato que gizava nos papéis encadernados que tinha sobre o colo, mas não podia escapar-lhe.

Os olhos demoraram-se no canapé estofado cor de marfim do outro lado da saleta, onde há apenas algumas horas ela surgira inesperadamente mais tarde do que o resto do grupo, num vestido de seda cor-de-rosa, para aplaudir a filha mais velha do anfitrião de ambos que se esmerara no cravo.

Lançou um olhar à janela, lá para fora para o alpendre, onde no dia anterior se aproximara sorrateiramente dele, com um punhado de peónias silvestres brancas na mão. Ainda pensava que a força que a atraía para ele era inocente, que os seus encontros frequentes no belveder eram meramente… coincidências felizes. Como era ingénua! Nunca lhe diria nada em contrário, o segredo era dele, arcaria com ele.

Ergueu-se e virou-se, os esboços pousados na cadeira de couro. E lá estava ela, comprimida contra a cortina de veludo cor de rubi no seu simples penteado branco. O cabelo negro soltara-se da trança. A expressão no rosto era a mesma que desenhara tantas vezes. Lá estava o fogo, a subir-lhe nas faces. Estava zangada? Inibida? Desejava ardentemente saber, mas não se atrevia a perguntar.

- O que está aqui a fazer? – Detectou a rispidez na sua voz e lamentou a brusquidão, sabendo que ela nunca entenderia.

- Eu…não conseguia dormir- tartamudeou ela, avançando na direcção da lareira e da sua cadeira. – Vi a luz no seu quarto e depois… – fez uma pausa, olhando para as mãos – o seu baú à porta. Vai a algum lado?

- Ia dizer-lhe… – Interrompeu-se. Não devia mentir. Nunca pretendera que ela ficasse a saber dos seus planos. Dizer-lho só tornaria as coisas piores. Já deixara as coisas chegar demasiado longe, na esperança que desta vez fosse diferente.

Ela acercou-se mais e os olhos detiveram-se no caderno de esboços.

- Estava a desenhar-me?

O tom sobressaltado recordou-lhe como era grande o fosso entre o que ambos compreendiam. Apesar de todas as horas que tinham passado juntos nestas últimas semanas, ela estava muito longe de vislumbrar a verdade que se escondia por trás da atracção que existia entre os dois.

Isso era bom, ou pelo menos era melhor para ela. Nos últimos dias desde que tomara a decisão de partir, lutara para se afastar dela. O esforço exigia tanto dele que, logo que ficava sozinho, tinha de ceder ao desejo reprimido de a desenhar. Enchera o caderno com páginas do seu pescoço arqueado, dos seus ombros de mármore, do abismo negro do cabelo.

Voltou a olhar para o esboço, não envergonhado por ter sido apanhado a desenhá-la, mas pior. Um arrepio gelado percorreu-o quando percebeu que a descoberta dela, a revelação dos seus sentimentos, a destruiria. Devia ter tido mais cuidado. Começava sempre assim.

- Leite quente com uma colher de sopa de melaço – murmurou, ainda de costas para ela.

Depois acrescentou com tristeza:

- Ajuda-a a dormir.

- Como sabia? Ora, é exactamente o que a minha mãe costumava…

- Eu sei - retorquiu, virando-se para a enfrentar.

O tom espantado da voz dela não o surpreendeu, porém não podia explicar-lhe como sabia, ou dizer-lhe quantas vezes lhe administrara esta mesma bebida no passado quando as sombras chegavam, como a abraçara até ela adormecer.

Quando lhe tocou foi como se algo o queimasse através da camisa, a mão dela pousada suavemente no seu ombro, fazendo-o arquejar. Ainda não se tinham tocado nesta vida e o primeiro contacto deixava-o sempre sem fôlego.

- Responda-me – sussurrou ela. – Vai partir?

- Sim.

- Então leve-me consigo – exclamou bruscamente.

Mesmo no momento certo, viu-a suster a respiração, desejando retirar o que dissera, aquela súplica. Observou a evolução das emoções a instalar-se no vinco entre os olhos. Sentir-se-ia impetuosa, depois desnorteada, a seguir envergonhada do seu próprio atrevimento. Fazia sempre isto e, demasiadas vezes anteriormente, cometera o erro de a consolar neste exacto instante.

- Não – sussurrou, recordando-se…recordando-se sempre…- Parto amanhã. Se se interessa um pouco por mim, não dirá nem mais uma palavra.

- Se me interesso por si – repetiu ela, quase como se falasse consigo mesma. – Eu…eu amo…

- Não.

- Tenho de dizê-lo. Eu…eu amo-o, tenho absoluta certeza e se partir…

- Se partir, salvo-lhe a vida. – Falou lentamente, tentando chegar a alguma parte dela que pudesse recordar-se. A lembrança estaria lá, enterrada algures? – Algumas coisas são mais importantes do que o amor. Não está a entender, mas tem de confiar em mim.

Os olhos dela fulminaram-no. Deu um passo atrás e cruzou os braços sobre o peito. A culpa desta atitude era sua também…Fazia sobressair sempre o seu lado desdenhoso quando falava com ela daquela maneira.

- Está a querer dizer que há coisas mais importantes do que isto? – desafiou-o, pegando-lhe nas mãos e puxando-as para o seu coração.

Oh, quem lhe dera ser ela e não saber o que aí vinha! Ou pelo menos ser mais forte do que era e conseguir fazê-la parar. Se não a fizesse parar, ela nunca aprenderia e o passado repetir-se-ia muito simplesmente, torturando-os a ambos, vezes sem conta.

O calor familiar da pele dela sob as suas mãos obrigou-o a inclinar a cabeça para trás e gemer. Estava a tentar ignorar o facto de ela se encontrar muito perto, de conhecer muito bem a sensação dos lábios dela nos seus, de se sentir tão ressentido por tudo isto ter de terminar. Mas os dedos dela eram tão leves nos seus. Sentia-lhe o coração a bater com tanta força através do tecido de algodão fino.

Ela tinha razão. Não havia mais nada senão isto. Nunca houvera. Estava prestes a ceder e a tomá-la nos seus braços quando lhe detectou a expressão nos olhos. Como se tivesse visto um fantasma.

Foi ela que se afastou, uma mão na testa.

- Estou a ter uma sensação esquisitíssima – sussurrou.

Não…seria já demasiado tarde?

Os olhos dela estreitaram-se tal como os desenhara no esboço e voltou a aproximar-se dele, as mãos no seu peito, os lábios entreabertos e expectantes.

- Diga-me que estou louca, mas juro que já aqui estive antes…

Então era mesmo demasiado tarde. Ergueu os olhos, a tremer e sentiu a escuridão a descer. Agarrou a última oportunidade de a aprisionar, de a abraçar com tanta força quanto ansiava há semanas.

Logo que os lábios dela se fundiram nos seus, ambos ficaram impotentes. O sabor a madressilva da boca dela entonteceu-o. Quando mais ela se comprimia contra ele, mais o seu estômago se agitava com a excitação e a dor daquilo tudo. A língua dela delineou a dele e o fogo entre eles ardeu mais brilhantes, mais quente, mais poderoso a cada novo toque, a cada nova exploração. Contundo, nada daquilo era novo.

A sala estremeceu. Uma aura à volta deles começou a cintilar.

Ela não reparou em nada, não estava consciente de nada, não compreendia nada para além do beijo que trocavam.

Só ele sabia o que estava prestes a acontecer, que companhia sombria estava preparada para atacar o seu reencontro. Apesar de, mais uma vez, não ser capaz de alterar o curso das suas vidas, sabia.

As sombras rodopiavam directamente por cima das suas cabeças. Tão próximas que poderia ter-lhes tocado. Tão próximas que se perguntou se ela conseguiria ouvir o que sussurravam. Viu a nuvem a passar-lhe pelo rosto. Por um instante, vislumbrou um lampejo de reconhecimento a crescer-lhe nos olhos.

Depois mais nada, absolutamente mais nada.

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