terça-feira, 3 de maio de 2016

Escrita Criativa FLUL - 2016

Ela era uma amiga minha.

Pele branca como a neve
Cabelos negros como breu
Lábios vermelhos como sangue 
E olhos azuis como o céu

Quando nos conhecemos eu tinha catorze anos e ela teria uns quinze ou dezasseis. O pai, há muito falecido, deixou toda a fortuna à sua única filha. Mas o padrasto, esse filho da puta, embebedava-se. Batia na mãe e violava a miúda. Convenceu os tribunais a deixá-lo gerir a herança até ela cumprir os dezoito anos de idade. Era assim que a prendia. A mãe sabia de tudo, mas pelo dinheiro e pelo seu próprio couro, nunca teve coragem para tentar impedi-lo.

Quando nos conhecemos, éramos duas crianças ingénuas, mas não era assim que eu a via. Ela agia de maneira diferente comigo, empinava o nariz fumando o seu cigarro de filtro branco com os pulsos cobertos de marcas e cicatrizes. As minhas não eram visíveis de fora, as dela e toda a dor nela expiravam por todos os poros. Noite após noite, o cabrão adormecia sem saber que eu me esgueirava para o quarto dela. Ela falava como se já tivesse vivido tudo e eu idolatrava-a. Só hoje vejo o quão destruída ela estava. A química entre nós era incontornável, quebrou todas as barreiras lógicas e depois de uma noite em que as palavras foram o meio, cedemos.

Na noite em que dormimos juntas, foi apenas isso que aconteceu. Despimo-nos, partilhámos segredos e cicatrizes. Entrei tanto nela, deixei que ela entrasse tanto em mim até não saber bem onde começava ela e acabava eu. Chegada a manhã, fomos acordadas pela mãe dela. As roupas foram-me atiradas e fui indicada à saída num inglês do interior dos Estados Unidos.

Nessa semana chovia a potes, tanto que ainda hoje as nuvens cinzentas são como a sua presença a pairar sobre mim. Combinámos fugir. Não havia destino, nada mais importava agora que eu tinha encontrado alguém que me entendesse, e ela alguém que a protegesse daquele monstro. Eu prometi nunca mais largá-la. Nessa noite, o relógio parecia parado e o tempo teimava em passar. Os meus olhos pesavam, fechei-os para descansar a vista e quando voltei a abri-los já o sol espreitava timidamente por entre as brechas dos estores. Corri para casa dela mas dei de caras com a casa deserta. Prometeu que no dia do seu décimo oitavo aniversário entraria no primeiro avião para cá e levar-me-ia para o mais longe possível, e eu acreditei.

Chegou finalmente Janeiro. Nessa noite dormi com outra pessoa, alguém real. Pedi-lhe para não voltar mais. Prometi ser eternamente sua mas não podia deixar escapar aquilo que tinha nas mãos. Duas semanas depois encontraram o corpo. Foi junto ao lago, no campus da Universidade, heroína. Deixou um bilhete: E eu amo-te infinitamente, amor, não consegues ver que eu nunca estarei satisfeita?


Toda a sua vida foi marcada por depressão, abuso, autodestruição, confusão mental, crises de identidade, paixões intensas e mal terminadas e uma inocência que só eu conhecia. Lutas internas e externas com um passado que teimava em não passar. Um infinito mundo dentro de uma menina pequena com olhos grandes e um sorriso arrebatador. Nunca ninguém me tinha marcado como ela. Nem mesmo as pessoas reais que por mais que tentem e queiram nunca sentiram na pele aquilo que eu e ela vivemos.

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