Ela era uma amiga minha.
Pele branca como a neve
Cabelos negros como breu
Lábios vermelhos como
sangue
E olhos azuis como o céu
Quando nos conhecemos eu tinha
catorze anos e ela teria uns quinze ou dezasseis. O pai, há muito falecido,
deixou toda a fortuna à sua única filha. Mas o padrasto, esse filho da puta,
embebedava-se. Batia na mãe e violava a miúda. Convenceu os tribunais a
deixá-lo gerir a herança até ela cumprir os dezoito anos de idade. Era assim
que a prendia. A mãe sabia de tudo, mas pelo dinheiro e pelo seu próprio couro,
nunca teve coragem para tentar impedi-lo.
Quando nos conhecemos, éramos duas
crianças ingénuas, mas não era assim que eu a via. Ela agia de maneira
diferente comigo, empinava o nariz fumando o seu cigarro de filtro branco com
os pulsos cobertos de marcas e cicatrizes. As minhas não
eram visíveis de fora, as dela e toda a dor nela expiravam por todos
os poros. Noite após noite, o cabrão adormecia sem saber que eu me esgueirava
para o quarto dela. Ela falava como se já tivesse vivido tudo e eu
idolatrava-a. Só hoje vejo o quão destruída ela estava.
A química entre nós era incontornável, quebrou todas as barreiras
lógicas e depois de uma noite em que as palavras foram o meio, cedemos.
Na noite em que dormimos juntas,
foi apenas isso que aconteceu. Despimo-nos, partilhámos segredos e
cicatrizes. Entrei tanto nela, deixei que ela entrasse tanto em mim até não
saber bem onde começava ela e acabava eu. Chegada a manhã, fomos acordadas pela
mãe dela. As roupas foram-me atiradas e fui indicada à saída num inglês do
interior dos Estados Unidos.
Nessa semana chovia a potes,
tanto que ainda hoje as nuvens cinzentas são como a sua presença a pairar sobre
mim. Combinámos fugir. Não havia destino, nada mais importava agora que eu
tinha encontrado alguém que me entendesse, e ela alguém que a protegesse
daquele monstro. Eu prometi nunca mais largá-la. Nessa noite, o relógio parecia
parado e o tempo teimava em passar. Os meus olhos pesavam, fechei-os para
descansar a vista e quando voltei a abri-los já o sol espreitava timidamente por
entre as brechas dos estores. Corri para casa dela mas dei de caras com a casa
deserta. Prometeu que no dia do seu décimo oitavo aniversário entraria no
primeiro avião para cá e levar-me-ia para o mais longe possível, e eu
acreditei.
Chegou finalmente Janeiro. Nessa
noite dormi com outra pessoa, alguém real. Pedi-lhe para não voltar mais.
Prometi ser eternamente sua mas não podia deixar escapar aquilo que tinha nas
mãos. Duas semanas depois encontraram o corpo. Foi junto ao lago, no campus da
Universidade, heroína. Deixou um bilhete: E
eu amo-te infinitamente, amor, não consegues ver que eu nunca estarei
satisfeita?
Toda a sua vida foi marcada por
depressão, abuso, autodestruição, confusão mental, crises de identidade,
paixões intensas e mal terminadas e uma inocência que só eu
conhecia. Lutas internas e externas com um passado que teimava em não
passar. Um infinito mundo dentro de uma menina pequena com olhos grandes e
um sorriso arrebatador. Nunca ninguém me tinha marcado como ela. Nem mesmo as
pessoas reais que por mais que tentem e queiram nunca sentiram na pele aquilo
que eu e ela vivemos.
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